Cantora se prepara para a estreia da versão para os palcos do filme "Kinky Boots - Fábrica dos Sonhos", para o qual compôs a trilha sonora
"Estou parecendo aquela mulher de 'Crepúsculo dos Deuses'", afirmou Cyndi Lauper com sua voz esganiçada.
A cantora conferiu o visual no espelho do hall, cercada de discos de platina emoldurados. Embora fale com a altivez de uma prostituta tirada de um filme dos anos 1940, misturada com um personagem de "Os Bons Companheiros" – e com todos os xingamentos correspondentes – Lauper está longe de se parecer com a profana Norma Desmond.
Vestida de preto dos pés à cabeça, a não ser por um casaco de oncinha e um chapéu que apertava seus cabelos cor de rosa, a cantora de sucessos eternos como "Girls Just Want to Have Fun" e "True Colors" parecia ser o que realmente é: uma pioneira do rock.
Isso aconteceu numa quarta-feira, pouco antes de sair de seu apartamento no edifício Apthorp, em Upper West Side, quando caminhou algumas quadras até o Beacon Theater para ver a apresentação das amigas Tegan e Sara, uma dupla de gêmeas indie-pop. Essa foi uma das raras noites em que Lauper pôde passear, num dos anos mais criativamente diversificados de sua carreira.
Nos bastidores, ela contou à dupla – Tegan e Sara Quin – sobre os últimos projetos: um livro de memórias, publicado em setembro; um reality show chamado "Still So Unusual" ("ainda tão estranha", em tradução literal, o segundo depois de uma curta passagem por "Celebrity Aprentice") sobre sua vida durante a turnê e com a família; e principalmente a versão para a Broadway do filme "Kinky Boots: Fábrica de Sonhos", de 2005, para o qual Lauper compôs sua primeira trilha sonora.
Tegan e Sara ficaram impressionadas. "Desde que fizemos a turnê com você, sempre comentamos sobre como está afiada e cantando bem", afirmou Tegan.
Durante o show a dupla cantou um dos hits de Lauper, "When You Were Mine", dedicando-o à compositora; essa foi uma canção que as influenciou durante a infância, contaram. Na plateia, Lauper se emocionou e ficou muito entusiasmada.
"Isso é incrível, incrível!", gritava. Em seguida, enviou um tuíte dizendo o mesmo.
Nos últimos tempos, a extravagante Lauper tem chorado bastante de emoção, principalmente por conta de "Kinky Boots".
Embora tenha ajudado a produzir os próprios discos e escrito dezenas de sucessos de rádio, tendo vendido mais de 40 milhões de discos, Lauper não é vista como compositora. O espetáculo "Kinky Boots" pode mudar isso para sempre, com canções que vão do pop ao funk, passando pelo new wave e o tango, com baladas pegajosas e letras muito pessoais, abrindo uma nova fase em sua carreira.
Os ensaios e a estreia marcada para 4 de abril marcam o auge de quatro anos de colaboração entre Lauper, o diretor Jerry Mitchell e o escritor Harvey Fierstein. Contudo, ganhar dinheiro sem precisar cantar a deixou bastante nervosa, admitiu Lauper.
"É a primeira vez que entro na dança", afirmou. "Eu queria que ficasse muito bom, porque eles acreditaram em mim." Foi Fierstein que a convidou para o trabalho.
"Estava tranquila, lavando louça", contou Lauper. "Então o Harvey me ligou e disse" (imagine-a imitando a voz rouca de Fierstein): "O que você está fazendo?".
Fierstein, que trabalhou em "Kinky Boots" enquanto escrevia outro musical para a Broadway, "Newsies", e uma peça, afirmou que viu na adaptação uma oportunidade para trabalhar com alguém com grandes habilidades musicais, "alguém que pudesse escrever músicas dançantes", afirmou, além de canções para espetáculos.
Mesmo antes de uma temporada piloto em Chicago, o remix de uma música do show, "Sex Is in the Heel", chegou ao top 10 da parada da Billboard, a primeira canção da Broadway a realizar esse feito em 25 anos.
Segundo Fierstein, a história de uma fábrica de sapatos prestes a falir na Inglaterra e que é salva quando o dono resolve fazer uma parceria com uma drag queen para criar fabulosos sapatos de salto alto para seus compatriotas parecia estar dentro do escopo de Lauper. ("Pelo menos os sapatos estavam!", afirmou.) Ambos se identificaram com os temas do espetáculo: a descoberta de identidades, a aceitação e a criatividade como caminho para a transformação.
"Sabia que ela entenderia a mensagem do marginalizado", afirmou Fierstein, explicando sua amizade. "Temos origens parecidas. Ela é do Queens, eu sou do Brooklyn. A foto da capa de seu primeiro disco foi tirada em frente ao museu de cera de Coney Island", afirmou, referindo-se a "She's So Unusual", o primeiro disco solo de Lauper, lançado em 1983, de onde saíram quatro canções que chegaram ao Top 5 da Billboard, incluindo "Girls Just Want to Have Fun", "She Bop" e "Time After Time".
A inspiração de Lauper veio dos discos da Broadway que ouvia quando era criança em Ozone Park – os exemplares de "South Pacific" e "West Side Story" que a mãe tinha.
Mas as 15 canções apontam para sua personalidade exuberante. Mais do que qualquer músico veterano com sua idade – Lauper fará 60 anos em junho – a compositora traz influências católicas e faz referências a artistas do momento, como Lana Del Rey, com a mesma naturalidade com que cita "Appalachian Spring", de Aaron Copland.
A canção cômica "The History of Wrong Guys", que poderia ter sido um de seus sucessos dos anos 1980, tirou o nome de uma fala do filme "Kung Fu Panda".
"Ela tem a mente de uma adolescente que sempre quer saber qual será a nova onda do momento, a próxima grande novidade", afirmou o amigo Alan Cumming.
Mas Lauper também preserva uma ética ferrenha sobre o palco. Pratica meticulosamente seus exercícios vocais – a cantora ainda trabalha com um professor de canto – e presta muita atenção ao áudio. Quando ela e Cumming se apresentaram na entrega dos Tonys, Lauper trouxe mais um engenheiro de som, contou.
"Ela entende muito bem todos os aspectos envolvidos na vida artística", da iluminação ao guarda-roupas, afirmou Cumming. "A Cindy possui um senso inato de teatralidade e sempre busca contar uma história quando canta. Por isso, acho que esse é o caminho certo para ela", acrescentou em relação a sua estreia como compositora da Broadway.
Ela tem se dedicado de corpo e alma, aperfeiçoando as orquestrações e se sentando no chão dos mezaninos durante os ensaios para garantir que o som estivesse bom.
"A maior parte dos artistas pop vai até você e diz: 'Ah, você quer escrever um espetáculo para a Broadway. Aqui estão minhas canções. Divirta-se'. A Cyndi realmente fez o trabalho", afirmou Fierstein.
Ele espera que "Kinky Boots" ajude a consagrar ainda mais essa artista de visão singular.
"Nosso setor é muito duro com as mulheres e ela precisou batalhar para ser levada a sério, não porque é mulher, mas porque é uma mulher com aquele sotaque, aquela voz e aquela cara de 'olhem para mim, estou me divertindo'", afirmou. "Mas a Cyndi não é só isso. Ela lutou contra o machismo da indústria fonográfica e do mundo."
Essa luta começou desde cedo: Lauper enviava mensagens feministas desde que começou a carreira como cantora na banda Blue Angel. "Girls Just Want to Have Fun", seu primeiro grande sucesso, era uma canção "chiclete" intencionalmente rebelde. E quando gravou o clipe, Lauper se assegurou de que estivessem presentes pessoas de diversas origens étnicas e com diferentes tipos de corpos, muito antes disso ser praxe na indústria.
Seu estilo punk também entrou na memória do mundo pop: Lady Gaga é sua fã.
Mesmo quando enfrentava lutadores profissionais nos vídeos dos anos 1980, Lauper, que tinha 30 e poucos anos na época, se mantinha perto de sua família. Ela se casou com o ator David Thornton em 1991 e eles têm um filho de 15 anos chamado Declyn.
Embora tenha feito muitas canções pegajosas e animadas, o principal aspecto de "Kinky Boots" são as baladas emotivas sobre o peso das expectativas dos pais.
"Tudo o que queremos é que as pessoas entendam que quando se tem filhos, é preciso ajudá-los a ser quem realmente querem", afirmou Lauper.
Fonte: IG/The New Yorq Times